Cotidiano
Publicado em 31/07/2025Atualizado em 31/07/2025

Continua em cartaz o show de preconceitos em rádio da capital

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Foto/divulgação: Carlos E. Sales/TJMA

O show de machismo e misoginia, com participação especial da homofobia, continua em cartaz em ‘E se fosse você?’, da Sucesso FM, emissora do Grupo Arapuan de Comunicação, de João Pessoa. Foi o que constatou equipe do Alumia ao retomar entre os dias 14 e 25 deste mês o monitoramento da principal atração da rádio, líder de audiência das 9 às 10h, horário do programa monitorado.

A liderança da Sucesso FM ancorada no ‘E se fosse você?’ deve-se, em tese, à forma como a sintonia atrai e estimula considerável número de ouvintes a se manifestarem sobre histórias e situações constrangedoras, humilhantes até. Fictícios ou não, os relatos de dramas e dilemas apresentados induzem a manifestações preconceituosas contra mulheres e gays, principalmente.

CADELA COMPARTILHADA

No dia 14, ‘Vítor’, 29 anos, morador de João Pessoa, pediu conselhos sobre se devia ou não continuar namorando Meirinha, que divide com um ex a guarda da cadelinha Dandara. Disse que certa vez foi à casa da namorada e ‘pegou o cara’ dando banho na cachorrinha. “Ela jura de pé junto que não tem nada com ele, mas… Eu fui lá, e quem me atendeu foi ele, sem camisa, de shortinho fininho, daqueles de banho, todo molhado!”, relata o desconfiadíssimo namorado.

“Ele tá torando a sua namorada”, “O cara tá dando banho em Dandara e na dona da Dandara e tome chifre” e “Esse pobi tá levando uma gaia tão grande”. Falas de vozes masculinas que ligaram para o programa. Uma mulher também participou para dizer que Meirinha é “muito é safada”. Mais homens telefonam. Um chama de ‘pilantra’ a namorada de Vítor, outro questiona porque o rapaz ainda está com a “sem vergonha”; um terceiro, sugere que Vítor procure outra, porque “essa daí é sem futuro”.

A FILHA DO AMIGO

Na história do dia 15, Vagner, 40 anos, desempregado, solteiro, arranja moto com um amigo para fazer transporte por aplicativo, de onde tiraria o próprio sustento e o da filha de seis anos. Em troca, teria que levar Rayana, 17 anos, todos os dias para uma faculdade. Levar e trazer de volta, evitando assim que a jovem pudesse ser assediada por motoristas ou motoboys outros, uberizados. Ela é filha de Gilberto, o amigo certo que socorreu Vagner na hora mais incerta.

Não demorou, das idas e vindas das aulas da moça brotou um romance. Temendo que Gilberto descubra tudo, tome a moto e faça algo mais em nome da revolta e suposta traição, Vagner pergunta ao programa e ouvintes se deve contar tudo ao pai dela ou terminar o relacionamento. Diz ainda que Rayana, muito apaixonada, quer assumir e enfrentar toda e qualquer reação da família.

O primeiro comentário vem do apresentador Alisson Cardoso, para quem “homem velho com mulher nova só dá em cangaia mesmo”. Opinião compartilhada pela maioria dos ouvintes que participam, aconselhando Vagner a terminar o namoro com Rayana, pois “a menina vai trair” o namorado mais cedo ou mais tarde e que o melhor a fazer é preservar a amizade com Gilberto.

VENDEDOR DE PAÇOCA

Dia 16 de julho. Marido conta que dedicou anos de sua vida à esposa, mas recentemente descobriu que estava sendo traído com o paçoqueiro do ônibus que eles pegavam todos os dias. “Ser trocado por um cara que vende paçocas?” — eis a maior indignação do homem. O homem traído revela que a esposa não sabe que ele descobriu a traição e pede ajuda para expulsá-la de casa sem que ela leve nada.

O apresentador do ‘E se fosse você?’ abre um desfile de piadas chamando de ‘’corno da paçoca’’ o pretenso narrador da história. Logo um ouvinte liga para alertá-lo: ‘’Se você tá achando sua esposa diferente, fica vendo se ela não tá com calcinha nova no varal, se não tá se preocupando mais com depilação.’’ Já uma ouvinte infere que o marido tem culpa por não se cuidar, ser do tipo que “ainda por aí de calça desbotada, o tênis feio, e a mulher toda maquiada”.

Outros não economizam no escracho. ‘’Para o cara ser trocado por um cara que vende paçoca, ele deve tá dando não só paçoca para ela mas outra coisa também”, observou um. ‘’Mulher é bicho nó cego, mesmo”, atalhou outro. “Se ficar com ela, além de ser corno paçoca, vai ser um otário”, previu uma. ‘’Se ela tá com ele, amou a paçoca dele’’, avaliou outra. “Ele tá paçocando”, arrematou outro homem.

BOA NOITE, CINDERELA

Eduardo, porteiro, 45 anos, recorreu ao ‘E se fosse você?’ do dia 17. Contou que quando mais jovem não pensava em relacionamento sério, tinha orgulho de ser solteiro, curtir a vida na boemia e até de pagar a alguém que lhe desse prazer. Certa noite, conheceu Janiele em um aplicativo de relacionamento. Encontraram-se, foram a um motel, onde sofreu o golpe conhecido como ‘Boa noite, Cinderela’, quando a vítima toma sem saber algo que faz adormecer e facilitar roubo ou furto.

Depois do episódio, Eduardo resolveu mudar e mudou. Passou a frequentar uma igreja, onde começou a namorar Joana, uma das fiéis. Onde encontrou também ninguém menos que Janiele. A mesma Janiele que o teria furtado no motel e, pior, prima da namorada que pedira em orações. O dilema: conta tudo a Joana para, inclusive, reaver o que lhe foi tomado, ou segue em frente, sem sequer confrontar Janiele?

A primeira pessoa que liga, uma mulher, recomenda ao autor da carta contar toda a verdade à namorada, mas desaconselha enfrentar Janiele, pois pode ser perigoso, porque ele não sabe com quem ela se relaciona. Outra alerta Eduardo para ter cuidado com as “boyzinhas”, comparando-as a Satanás.

Um ouvinte, o sétimo na linha, aconselha Eduardo a “deixar pra lá”, porque “garotas de programa” seriam risco comum a todos os homens. O décimo-quarto a ligar diz para Eduardo ter cuidado até com a namorada, pois “as certinhas também podem ter seus gostos peculiares”, como gostar de “macaxeira”.

GAROTA DE PROGRAMA

No dia 21, Isadora, 23 anos, confessa em carta que é garota de programa apaixonada por Marcelo, um “cliente fixo” que a rejeitou de forma humilhante diante da declaração de amor da jovem. Ela pede conselhos para decidir se conta sobre o relacionamento à esposa dele.

“Marcelo falou que jamais faria isso na vida dele, que eu não sou mulher decente e digna para ser apresentada assim ao público, para ser apresentada como namorada ou mulher, e que mulher decente e de verdade era a mulher dele”, narra Isadora, depois de informar que o seu cliente sempre falava mal da mulher com quem casara.

“Perdi o amor, o cliente e fui tratada como lixo. Um verdadeiro entulho de lixo. Só que eu estou com vontade de contar tudo para a esposa dele. Eu tenho todas as conversas salvas e eu sei que sou uma garota de programa, que meu tratado com ele era sair, mas foi ele quem plantou essa semente de amor dentro do meu coração, pela forma como ele me tratava, como a gente tinha essa relação”, acrescenta.

Antes de abrir o programa para ligações de ouvinte, o apresentador comenta que “mulher de fora faz todo tipo de safadeza que mulher de casa não faz”, reforçando o estereótipo de esposa “recatada, do lar”, enquanto mulheres como Isadora seriam a personificação da safadeza. “Mulher do job não beija na boca não, porque se apaixona””, complementa.

Um ouvinte garante a Isadora que Marcelo jamais deixará a esposa “por alguém do job”, repetindo o termo usado pejorativamente por Cardoso para se referir ao ofício de quem escreveu para o programa. “Ele nunca vai deixar a mulher dele não, meu amor. Qual é a parte que você não entende? Todo homem que sai com alguém do job, ele não deixa a mulher dele pela menina do job não, viu?”, reforça quem ligou e falou coisas do tipo.

Poucas pessoas que ligaram para o ‘E se fosse você?’ se compadecem de Isadora e se mostram compreensivos com o problema dela. Seguem a linha de que ele é o errado, não ela. Na sequência, porém, Alisson atende ao pedido de alguém que quer ouvir a canção ‘Rapariga Apaixonada’, interpretada por Edyr Vaqueiro, com versos que são um primor de grosseria e vulgaridade. Assim:

Acabei de ser expulso da minha própria casa
E o pior que eu tava errado e tive que aceitar
Tudo por causa de um print de uma desgramada
Que eu já pagava caro para não se apegar
Foi só eu falar que eu não queria mais, que eu ia ser fiel
pra minha mulher receber fotos e vídeos de amor num motel
Destruiu a minha vida, destruiu a minha casa
Olha o estrago que faz rapariga apaixonada

MARIDO BEBEDOR

No dia 22, um marido relata o fim do casamento “por uma besteira”. Sempre bebeu muito, diariamente, mas, após se tornar pai, diminuiu, garante. Mas não abre mão da cervejinha com os vizinhos. A esposa recriminava.

Reclamações terminavam em briga. “A mulher não entende, não, é pau!”, resume ele, que mandou a esposa para a casa da sogra depois de uma dessas brigas. Com a mulher na casa da mãe dela, ele achou de comemorar.

Convidou amigos para beber em sua casa. A mãe de um deles – “ boa, gostosa” – tomou todas e se exibiu, dançando e rebolando “até o chão”. A esposa soube do espetáculo; indignada, pediu separação. Meio arrependido, quer saber do programa se tenta (mais uma) reconciliação.

Alguns comentários de ouvintes: ‘’…tem mulher que fica enchendo o saco do cara’’; “… casamento assim não tem futuro não’’; ‘’… tu é homem ou um saco de batata?”; “… deixa ela lá na casa da mãe dela (…) e já que a coroa é boa, cai pra dentro”; ‘’… para com essa cachaça!”; “… deve ter alguém rondando teu pasto e aí para ela não deixar de uma vez, pois tá querendo te colocar na rédea”.

SEXUALIDADE EM DÚVIDA

Renan, promotor de eventos, define-se como “entendido”. Assumidamente homossexual, trabalha com muitas mulheres. Já tendo namorado uma garota no passado, atualmente vê com frequência mulheres trocando de roupa na sua frente. Uma delas, Tamires, despertou-lhe desejos que julgava impossível sentir.

O primeiro ouvinte diz que “se o sujeito ‘experimentar’ mulher”, nunca mais “queima a rosca”. Em seguida, uma ouvinte aconselha Renan a “correr atrás” de Tamires, porque ela teria conseguido, nele, “resetar as configurações de fábrica”. Outra, contudo, pondera que a mulher pode reagir negativamente, rejeitar e acabar amizade entre eles.

Homens voltam a ligar para o programa, entre eles um que duvida da “reversão de orientação” e outro que acredita que Renan pode deixar de “jogar água fora da bacia”, como teria acontecido com um amigo homossexual que “virou homem de novo”. Um terceiro alerta maridos cujas mulheres convivem com gays e travestis.

CONCLUSÃO ÓBVIA

O programa ‘E se fosse você?”, da Sucesso FM de João Pessoa, reforça estereótipos e preconceitos. A maioria dos seus ouvintes carrega na homofobia, no machismo e na desinformação, inclusive tratando a pretensa reversão à heterossexualidade como um “retorno ao normal”.

Em vez de promover debate ou acolhimento, lamentavelmente a emissora se oferece como espaço para disseminar ideias equivocadas sobre identidade e desejo. Pior: não há sinais de que a direção, produção ou locução da rádio compreenda que deve tratar a diversidade humana com responsabilidade e respeito

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Apuração: Anna Athayde, Gean Santos, Janaína Barbosa, Lívia Trajano e Sabrina Farias

Supervisão: Sônia Lima

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